Luís Vaz de Camões - Sôbolos rios que vão

Luís Vaz de Camões - Sôbolos rios que vão

Luís Vaz de Camões - Sobolos rios que vao br br br Sôbolos rios que vão br Por Babilônia, me achei, br Onde sentado chorei br As lembranças de Sião br E quanto nela passei. br br Ali, o rio corrente br De meus olhos foi manado; br E, tudo bem comparado, br Babilônia ao mal presente, br Sião ao tempo passado. br br Ali, lembranças contentes br Na alma se representaram; br E minhas cousas ausentes br Se fizeram tão presentes br Como se nunca passaram. br br Ali, depois de acordado, br Co rosto banhado em água, br Deste sonho imaginado, br Vi que todo o bem passado br Não é gosto, mas é mágoa. br br E vi que todos os danos br Se causavam das mudanças br e as mudanças dos anos; br Onde vi quantos enganos br Faz o tempo às esperanças. br br Ali vi o maior bem br Quão pouco espaço que dura; br O mal que depressa vem, br E quão triste estado tem br Quem se fia da ventura. br br Vi aquilo que mais vale, br Que então se entende milhor, br Quando mais perdido for; br Vi ao bem suceder mal br E, ao mal, muito pior. br br E vi com muito trabalho br Comprar arrependimento; br Vi nenhum contentamento, br E vejo-me a mim, que espalho br Tristes palavras ao vento. br br Bem são rios estas águas br Com que banho este papel; br Bem parece ser cruel br Variedade de mágoas br E confusão de Babel. br br Como homem que, por exemplo, br Dos transes em que se achou, br Despois que a guerra deixou, br Pelas paredes do templo br Suas armas pendurou: br br Assim, depois que assentei br Que tudo o tempo gastava, br Da tristeza que tomei, br Nos salgueiros pendurei br Os órgãos com que cantava. br br Aquele instrumento ledo br Deixei da vida passada, br Dizendo: — Música amada, br Deixo-vos neste arvoredo, br À memória consagrada. br br Frauta minha que, tangendo, br Os montes fazíeis vir br Pra onde estáveis correndo, br E as águas, que iam descendo, br Tornavam logo a subir, br br Jamais vos não ouvirão br Os tigres, que se amansavam; br E as ovelhas que pastavam, br Das ervas se fartarão br Que por vos ouvir deixavam. br br Já não fareis docemente br Em rosa tornar abrolhos br Na ribeira florescente; br Nem poreis freio à corrente, br E mais se for dos meus olhos. br br Não movereis a espessura, br Nem podereis já trazer br Atrás de vós a fonte pura, br Pois não pudestes mover br Desconcertos da ventura. br br Ficareis oferecida br À Fama, que sempre vela, br Frauta de mim tão querida; br Porque, mudando-se a vida, br Se mudam os gostos dela. br br Acha a tenra mocidade br Prazeres acomodados, br E logo a maior idade br Já sente por pouquidade br Aqueles gostos passados. br br Um gosto que hoje se alcança, br Amanhã já o não vejo: br Assim nos traz a mudança br De esperança em esperança br E de desejo em desejo. br br Mas, em vida tão escassa, br Que esperança será forte? br Fraqueza de humana sorte, br Que quanto da vida passa br Está recitando a morte! br br Mas deixar nesta espessura br O canto da mocidade! br Não cuide a gente futura br Que será obra da idade br O que é força da ventura. br br Que idade, tempo, o espanto br De ver quão ligeiro passe, br Nunca em mim puderam tanto, br Que, posto que deixe o canto, br A causa dele deixasse. br br Mas em tristezas e nojos, br Em gosto e contentamento, br Por sol, por neve, por vento, br Tendré presente á los ojos br Por quien muero tan contento. br br br Órgãos e frauta deixava, br Despojo meu tão querido, br No salgueiro que ali estava, br Que pera troféu ficava br De quem me tinha vencido. br br Mas lembranças da afeição br Que ali cativo me tinha, br Me perguntaram então: br Que era da música minha br Que eu cantava em Sião? br Que foi daquele cantar br Das gentes tão celebrado? br Porque o deixava de usar? br Pois sempre ajuda a passar br Qualquer trabalho passado. br br Canta o caminhante ledo br No caminho trabalhoso, br Por entre o espesso arvoredo; br E de noite o temeroso, br Cantando, refreia o medo. br br Canta o preso docemente, br Os duros grilhões tocando; br Canta o segador contente, br E o trabalhador, cantando, br O trabalho menos sente. br br Eu, que estas cousas senti br Na alma, de mágoas tão cheia, br Como dirá, respondi, br Quem alheio está de si br Doce canto em terra alheia? br br Como poderá cantar br Quem em choro banha o peito? br Porque, se quem trabalhar br Canta por menos cansar, br Eu só descansos enjeito. br br Que não parece razão br Nem parece cousa idônea, br Por abrandar a paixão, br Que cantasse em Babilônia br As cantigas de Sião. br br br Que, quando a muita graveza br De saudade quebrante br Esta vital fortaleza, br Antes moura de tristeza br Que, por abrandá-la, cante. br br Que, se o fino pensamento br Só na tristeza consiste, br Não tenho medo ao tormento: br Que morrer de puro triste, br Que maior contentamento? br br Nem na frauta cantarei br O que passo e passei já, br Nem menos o escreverei; br Porque a pena cansará br E eu não descansarei. br br Que, se a vida tão pequena br Se acrescenta em terra estranha, br E se Amor assim o ordena, br Razão é que canse a pena br De escrever pena tamanha. br br Porém se, pera assentar br O que sente o coração, br A pena já me cansar, br Não canse pera voar br A memória em Sião. br br Terra bem-aventurada, br Se, por algum movimento, br Da alma me fores mudada, .......


User: Sanderlei

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Uploaded: 2015-07-22

Duration: 11:03

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